Graffiti em São Paulo: arte pública e o público da arte

Hélio Schonmann

O graffiti vem conquistando enorme importância no universo das artes visuais, ao longo das últimas décadas. E o público, que participação vem tendo nesse processo? A invejável capacidade de comunicação dessa linguagem tem como conseqüência um acolhimento cada vez maior por parte do morador paulistano, fato que talvez ainda não seja devidamente compreendido e nem suficientemente valorizado.
Vou me ater a um ponto, entre tantos que poderiam ser destacados, na relação do graffiti com seu público: a inexistência de intermediação entre as imagens e o observador. Na rua não existem curadorias, monitorias, textos teórico-explicativos. Ou seja: inexistem os filtros a que estamos habituados, no circuito das artes plásticas. Não quero com isso sugerir que a população repudie conscientemente esses filtros, nem muito menos pretendo entrar aqui na discussão sobre o mérito da seleção de obras nos espaços expositivos tradicionais. Constato tão somente que, em sua relação livre, direta e continuada com o transeunte, linguagens de rua aprenderam a dialogar com o universo imagético e sensível da população de uma maneira extremamente eficiente, criando vínculos profundos com o habitante da metrópole. O que a população tem visto, pelos muros da cidade, são manifestações que se dirigem a ela de forma direta, buscando atraí-la das mais variadas maneiras – através do estranhamento, da emoção, da denuncia, do humor. Constato também que essa intenção explícita de comunicação não impede, no trabalho dos melhores artistas de rua, uma elaboração incessante da linguagem. Uma linguagem que, cada vez mais, vai se pondo a serviço da cidade, como podemos constatar pelos dois eventos que comento a seguir.
O primeiro deles foi uma intervenção coletiva, promovida no início de 2009 por Ozi, um dos mais respeitados grafiteiros da cidade, nas vielas próximas ao Cemitério Chora Menino, na capital. Seu objetivo foi chamar a atenção para esses becos escondidos e praticamente esquecidos, tanto pelo poder público como pela própria população. Esse é um momento privilegiado para a arte de rua: quando ela se propõe a contribuir de forma positiva na transformação da relação do habitante da metrópole com o espaço público. Tenho voltado a essas vielas e acompanhado o que acontece no local, aproveitando tais oportunidades para ouvir os moradores. Percebo um nítido apoio, por parte deles, à intervenção realizada por essas dezenas de artistas de rua. É perceptível a intimidade com que muitos olham hoje para tais imagens, que passaram a fazer parte de seu cotidiano. Surge desse vínculo com o graffiti um afeto mais profundo por essa nova/velha paisagem, agora transfigurada. Eventos como esse podem contribuir de forma muito concreta na melhoria da relação entre cidade e cidadão. Isso sem falar no inegável estímulo ao interesse pelas artes visuais que elas promovem, particularmente entre os jovens.
O segundo exemplo ilustra de maneira quase literal uma concepção de arte que inclua, entre seus objetivos, a aproximação com o olhar do transeunte – nesse caso estamos falando de um evento de arte pública realizado num espaço institucional (se bem que pouco convencional). A intervenção-exposição TRANSLÚCIDOS*, promovida pelo Coletivo Água Branca, ocupou as paredes de numa estrutura envidraçada do parque de mesmo nome, em São Paulo. Sua proposta foi estabelecer um diálogo entre linguagens diversas – graffiti, stencil, lambe-lambe, gravura, pintura, desenho. Artistas habituados ao muro trabalharam lado a lado com aqueles habituados ao cavalete. Partiu-se da premissa que é em parques como o Água Branca que podemos encontrar o paulistano mais disponível para receber algo novo, que exija dele atenção e tempo – são, portanto, locais privilegiados para manifestações artísticas que se proponham a um trabalho coletivo e experimental como esse. Aqui o próprio suporte representou o único e sutil limite de separação entre os participantes da intervenção e aqueles que acompanhavam a evolução do trabalho. Daí resultou, tanto no plano simbólico como no concreto, uma notável proximidade com o observador. Crianças e adolescentes foram, como seria de esperar, os que mais se achegaram, buscando muitas vezes um contato físico com as imagens que iam surgindo, pouco a pouco, sobre o vidro. Nos registros fotográficos desse evento percebo olhares e gestos de concentração, curiosidade e encantamento. Eles sintetizam, a meu ver, o papel que a arte pública efêmera vem assumindo na vida da sociedade contemporânea.

* Participantes: Celso Gitahy, Elias Júnior, Hélio Schonmann, Lúcia Neto, Ozi, Paulo Barreto, Pedro Maluf, Rubi, Thiago Vaz.